Mistérios de Isolamento
Abril 01, 2020
Pode estar isto a começar mas não sou inocente ao ponto de me deixar emocionar por tal efeméride. Sento-me no sofá da sala e sem saber se sinto sequer algo, acho sempre que te sorrio. Enquanto almoço há uma qualquer impressão de lábios que se rasgam em mim, de mim para ti, tens estado sempre além destas quatro paredes. Sorrio-te.
Termino a refeição nas mesmas condições destes últimos dias, só. Penso que na manhã adiantei o trabalho possível, doseado para que só dure um pouco mais, que só dure até amanhã. Só até amanhã. Agarro estas minhas leituras, Guterson, Melville e Homero, e neste lodaçal de tempo amorfo que me sobra, nada do que tenho é suficiente para a saudade de ti. Deveria estar a ler mais, a produzir mais, a ser mais. Deveria desligar as notícias, o aumento dos números, a tragédia dos outros que me invade a casa. Deveria gritar esta história de um vírus que se espalha e nos leva os velhos, a vergonha de uma ecologia forçada, a consciência de que tudo tem sido feito de forma medíocre. Em tudo isto que me julgo no dever, há algo que sem querer faço sempre, mesmo sem saber se sinto sequer algo, acho sempre que te sorrio.
A neve caindo sobre os cedros traz-me uma lenta agonia, um perverso prazer em viver um amor impossível em tempo de guerra. Moby Dick revela-se espirituoso, homossexual, molhado, despertando-me ímpetos de continuar o mergulho. A Ilíada é o meu banho de sangue, onde me junto ao mar cinzento cor de vinho. Sorrio-te.
Não estamos agora sós, sempre o estivemos, vivendo a urgência voraz de aniquilar o mundo. Sentado no sofá sem lágrimas, olhando o mar sem o olhar, penso na aprendizagem do Homem, no movimento da máquina, no choro de Aquiles. Amanhã morderemos dentro de nós os corações, e entre mistérios de isolamento há uma qualquer impressão de lábios que se rasgam em mim, lábios em mim que se rasgam, de mim para ti .