Memorial
Abril 28, 2020
Mal raiava o sol na rua ainda deserta, pela janela satisfazia-me a possibilidade de plenitude. Eram os tempos sem tempo, a luz ampla no ar húmido limpo puro, e eu menino tão sabedor que isso de se ser crescido nada me iria ensinar sobre isto de se estar vivo.
Não sei entretanto onde me perdi. Porque deixo horas abertas daquele que é o meu tempo a outros que se usam desse tempo. E eu, aqui, árvore em flor à espera nos frutos que não chegam. E eu aqui, com toda a força de viver contida à força de desbravar caminho invisível. E eu aqui árvore em flor com toda a força de viver contida nos frutos que não chegam à força de desbravar caminho invisível.
A rua era pisada com a vilar vermelha a meu lado, ainda a aprender a ser bípede de duas rodas seguia na imensidão do asfalto vazio que hoje só carros. Eram os anos da promessa para as gentes, estes os noventa do século vinte. Portugal a envelhecer qual país desenvolvido, reduzindo o desemprego, todos os marinheiros com casa, começando a saber escrever as suas canções e a caminhar rumo à academia. Era sim eu menino a pedalar a sorrir e Portugal a acreditar a sorrir comigo. A minha questão era o âmago das coisas, onde estava, sabendo sempre que a verdade da vida aí. E a querer responder, cresci.
Agora menos bípede, não tão sabedor, raramente encontro esse espaço, essa luz, esse sorrriso. Se sou eu, se é Portugal
E eu, aqui, ainda a querer responder. E eu aqui, pela janela a rua ainda deserta. No caminho a árvore a flor. Acho que um fruto.