A culpa não está nas nossas estrelas
Abril 10, 2020
Durante anos andei só a atribuir estrelas às leituras que faço (aos filmes até, veja-se) e na verdade assola-me a ideia de que não estou a dizer nada a ninguém. Habituados a categorizar, a colocar redoma sobre tudo o que é passível de ser hierarquizado, assim vai a nossa vida, e a era do digital veio exponenciar a abertura com que o fazemos: agora é para todos.
A ideia para este post surgiu de uma problemática de primeiro mundo, problemática recorrente, uma problemática que não sendo nova, não fora também por mim resolvida. Pois então li o "A Neve Caindo Sobre os Cedros" e gostei tanto do livro que o passo lógico era atribuir-lhe 5 estrelas no goodreads, mas espera lá, no goodreads também atribuí 5 estrelas a "Os Lusíadas", " A Morte em Veneza" e a "2001: Odisseia no Espaço". O que estou a dizer ao mundo com esta categorização universal que na verdade não me permite distinguir entre livros e que nada diz aos outros?
Na verdade, eu, pequeno hobbit em isolamento aqui no condado, acho que nada digo a ninguém. Nem a mim. As 5 estrelas definem-me favoritos, 4 para leituras que acho muito boas, 3 para livros que considero bons, 2 leituras razoáveis e 1 para o que considero um mau livro. Engavetamos assim o que lemos e não estimulamos o que é posterior, o pensamento crítico ou dispersão por leituras relacionadas sejam elas ensaísticas ou derivadas de. Ao escrever numa rede social como o goodreads corre-se também o risco de ficar perdido num ruído global de opiniões e estupidez, é o entrar na livraria a gritar o quanto se ama Proust e a malta toda quer é as madalenas. Este ruído que fazemos, na verdade, não será importante para o mundo que extravasa além do nosso e dos que de alguma forma nos são próximos ou apenas querem saber, como tu.
Solução? Uma isolada o suficiente, criar um quarto só para ti na internet, a Virginia sabia-o, ou um caderno de bordo. Começar a caminhar no sentido de elaborar e acrescentar ao que se lê. Aqui estou. Contrariando assim uma inércia estrelada, um dizer ao mundo que se leu sinonímico de não lido, uma passagem sem vida mas partilhada, com trocas de likes, o sermos tão boas pessoas, tão sociais só porque lemos as mesmas coisas e por isso felizes.
O mais importante será de facto inverter esta sofreguidão de aviar e engavetar leituras, de mostrar estrelas para logo de seguida esquecê-las. Extrair o máximo do que se leu, permitindo que haja uma memória do que foi e que a literatura nos possa habitar, e a existir acção farmacológica, que faça efeito. É claro que para mim Camões, Mann e Clarke terão qualidades particulares mas disto e de tudo o resto as estrelas nada dizem. Durante anos andei só a atribuir estrelas às leituras que faço.